abril 01, 2019

A cidade muda

Fundos (2019), David Leal

Quando as luzes se apagam sabemos que chegou o tempo da projeção. As conversas ficam suspensas, nenhum telemóvel brilha e todos os olhos estão presos no mesmo ecrã; sinto que vou ter um turno tranquilo. Parece que este filme aparece um pouco para além dos limites da tela, mas acho que hoje o projecionista não está a ter um bom dia. Fico na última fila e sussurro-lhe pelo rádio que a imagem e o som parecem bem. Começar a ver o autocarro que atravessa a Albert Bridge sobre o rio Tamisa chama-me um sentimento especial, transporta-me para um lugar mais perto de casa.

“Happy to hear. Here it’s been raining on and off. I was just wondering where she came from. Oh! Lovely.” Cada frase dita com uma clareza perfeita. Como um robô imaculado, a mulher atrás de mim não cede a suspiros no meio das palavras, se calhar nem respira. Cumpre aquilo que tem de ser cumprido. O solilóquio acaba e o autocarro fica em silêncio. O céu e o rio unem-se na mesma cor branca. Desta vez, é a mãe que me liga. Separam-nos centenas de quilómetros e de segredos. Pergunta-me se já estou a ganhar a vida. É evidente que vou continuar a caminhar como um fracasso, pois a maioria não pode ser um sucesso. É preciso ter certas qualidades para vingar. De resto, não sei que valor tem o dinheiro. Seria engraçado se os meus amigos soubessem onde se gastou o que emprestaram. Penso na desilusão, na imagem de mim, repudio-me mas não tenho ainda vontade de aceitar a morte da minha alma. É verdade que a mãe também passou por isto? É verdade que somos uma cópia, geradores de outras cópias, que a nossa história é a mesma e tudo se repete, de geração para geração? “Exiges demasiado. Agora, dinheiro certo...” Examinando quem vai ali de auscultadores, enquanto entra no parque com os olhos fitos no chão, parece-me certo que chegamos todos às mesmas conclusões secretas, que ninguém ensina nem tem coragem em legar.

Introduzido no parque, decido que já não preciso do demónio da música a crepitar nos ouvidos. Caminhei milhas e já tirei a peganhenta pele do uniforme, mas continuam a aparecer-me num sobressalto certas imagens, impressões avassaladoras e confusas que trago da festa que os colegas improvisaram depois do trabalho. A lentidão ternurenta de S. a preparar-me aquele álcool com leite, enquanto, ao seu lado, eu, burro, esperava todo vermelho; não consigo também deixar de sentir que S. me comunica sinais que não posso deixar escapar. O momento em que N. me aponta à socapa o telemóvel, para me fotografar e logo fazer o retrato mergulhar no mar das imagens, e eu, idiota, a tentar sorrir e a sentir-me encurralado, despido e triturado. Quando os observava a todos e a cada um, a rir, provocar e partilhar amor com magnanimidade, segurança e propriedade, eu, só, sorria, roendo-me por dentro, atacando-me como aquele que está mas não é visível, como aquele que diz sim mas nada compreende, como aquele que é convidado mas se senta no chão. “And he has that long lasting smile”, diziam ao meu lado. Sou duramente egocêntrico mas ninguém me julga tão mal, trata tão mal como eu mesmo. Qual é o meu problema, que remédio tomar? Porque é que é tão difícil encarar as pessoas nos olhos? O que há em mim que só os outros conseguem ver? Dominado pela aflição, claro que tinha de calhar de ir contra alguém que vinha na minha direção. Peço desculpa, mas não oiço o perdão.

Nem tive tempo. Guardei o telemóvel no bolso, vendo como o outro, alheado de tudo, desaparecia depressa na penumbra. A leitura recente dos astros não me aliviou. Ao alertar para os perigos nebulosos do autoengano e do contacto com o inimigo interior, ela augura trânsitos sombrios, tão lentos que vão influenciar-me durante anos, é o que parece! Dispenso a corroboração do desassossego, acho é desta que vou mandar a astrologia dar uma volta... já não é sem tempo. Amo a escuridão e a quietude deste parque. Caminho nesta selva, misturo-me nas sombras sem medo e, distante dos lampiões laranja que iluminam o remorso, consigo amansar a voz insolente que acusa, asfixia e diz que nada tenho para ser. Erro como solipsista, vejo além do rio a margem norte da cidade infestada de adultério, imagino a liberdade e os lugares para onde a aventura me conduz, predisposto a sentir tudo o que treme, a brisa imoral da noite e o rasto distante dos carros fantasma, som que lembra as ondas do mar. É uma solidão confortadora esta, mesmo se só por haver a promessa do regresso a casa. Na penumbra cintilada pelos cigarros, os homens aproximam-se mas não se olham. Aqui apenas os românticos e os pusilânimes procuram o olhar. Ninguém carrega a mesma expectativa. São estranhos. Mas farejam-se até onde podem, como um cão reconhece outro cão. Não deixo de sentir que estou a perder o meu tempo. Enquanto não tiver sequer forças para saber o que quero e desejo, dificilmente sairei da posição de mirone e poderei saciar as vontades das sombras que me encaram. Volto-lhes as costas sabendo, resignado, para onde ir. O extraordinário, porém, parecia esperar-me. Antes de chegar ao portão do parque, quando atravesso o Pagode da Paz, uma melodia de aspeto místico ascende ao céu de nuvens baixas e pesadas. Porque não distingo a origem de tão meigo mantra musical, resolvo que a decisão de voltar para a casa deles tinha sido legitimada pela beleza. “Olha para ti, olha por ti”, vou eu repetindo mentalmente.

Deitada na relva debaixo dos telhados do templo chinês, observo V. a tocar o hang. A dança das mãos é resoluta e hipnótica. O mais jovem dos instrumentos que, através do aço, convoca sons imemoriais, foi concebido perto de onde a minha história começava a ser escrita pela mãe e pelo pai, estrangeiros como eu quando tinham esta idade. Enquanto segue decidida o seu caminho, a música dissipa a desconfiança e a hesitação, torna-nos um corpo só e pede que situemos o coração no lugar certo. Se a telepatia existe, relembramo-nos agora que a respeito da nossa consciência somos incessantes camaleões; a mudança não é um corte mas um devir imperceptível e eterno. Com o pensamento digo-lhe que a nossa magia é boa. Não tenhas medo de te afirmar, não temas ver o outro, as coisas, a noite e a manhã. Caminhamos para casa em silêncio, não consigo perceber se continuamos a comunicar por dentro. Chegados ao corredor dos quartos, para concluir a noite, V. dá-me um abraço breve e prediz que me vê amanhã. Penso-o a dizer-me que somos duas solidões que se protegem.

No outro quarto da casa, o músico do desastre e do retorno continua acordado. Segura destemidamente o gravador, na ânsia de resgatar até onde puder os sonhos que eu recordo e consigo oferecer. Não é canibal nem psicanalista, creio que ele deseja perceber qualquer coisa, talvez queira reinventar-nos e superar o vício da autocontemplação. Ao nosso lado, a reservada M. também nos memoriza com a sua câmara de filmar. Somos os portadores do segredo do nosso destino comum. Seja ele qual for, vamos continuar a procurar consolo e potencial em acordarmos todos os dias e em nos termos uns aos outros.