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A flower storming in my heart (2021), David Leal |
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Todas as manhãs, ela tinha o ritual de se descobrir quando cobria o rosto com maquilhagem. Encarava o seu duplo depois de acordar, depois de ver no Instagram tudo aquilo de que se esqueceria, precisamente como os seus sonhos. Resignada por nunca saber como realmente apareceria aos outros, ela aceitava o reflexo invertido como a verdadeira imagem de si, o que é o mesmo que dizer que odiava profundamente essa repugnante alucinação. Eram nestes momentos que sobrevoavam as memórias mais despropositadas, como o conselho da amiga, a recomendação de “fingir até conseguir”. Mas não havia maquilhagem suficiente que tapasse aquela cicatriz em particular. Julgava que seria com um companheiro ao seu lado que a autoperceção se transformaria. Como ele nunca tinha comentado a marca no rosto, ela desconfiava, demasiadas vezes, que seria algo que o incomodaria. Se ele não a criticava, seria porque necessariamente a criticava em pensamento. Anos após se habituar a ver o mundo todo na sua mãe, anos sem perceber que talvez tivesse sido ela a primeira a partir-lhe o coração, ainda era difícil aceitar que alguém a pudesse aceitar. Mas hoje, pelo menos por uns instantes, ela podia permitir-se a esquecer-se de ver as coisas dentro dos quadros da psicologia e podia permitir-se a esquecer o inexplicável desgosto que era estar apaixonada, mas não por si mesma. Hoje, pelo menos por uns instantes, podia permitir que a cicatriz pudesse voltar a ser não a identidade, mas outra vez um pormenor.
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Um pormenor como estes segundos em que reparo como ela caminha lentamente, como que a pedir desculpa, ou como que a condescender com encontrar alguém que não era bem quem ela gostava que eu fosse. É então que percebo, como sempre, que poderá nunca haver uma união entre a expectativa e a realidade do encontro, uma combinação ideal entre quem é A e quem é B. O que me acalma é que a análise destes desfasamentos cai no mais profundo esquecimento assim que me digo para sorrir, para fingir até conseguir. Então sorrio, e passo a viver, e passo a viver mais do que a pensar. Hoje vamos ao cinema e continua a ser como ir à igreja, pois, fixados no grande ecrã, a nossa identidade, a individual e a de casal, poderá evaporar e sair no fim reformulada. Ela comenta que os bilhetes estão mais caros, diz que daqui a nada será como ir à ópera, e sei que há mais para além de sociologia naquela questão, há um medo que o cinema deixe de existir e que não saibamos o que fazer com o nosso tempo em dias como os de hoje. Na sala, são poucos os espectadores a disporem-se no espaço, não o fazem juntos, querem cada um uma fila de lugares, o tamanho da sua solidão. Mas nós somos dois, somos dois enquanto somos dois e, quando a sala escurece definitivamente, nós temos as mãos agarradas, firmemente como se já soubéssemos que não veremos nascer o sol amanhã; de facto, longe o tempo em que pressentíamos e desejávamos qualquer movimentação para que pudéssemos arriscar um toque virginal. Agora, sinto as nossas mãos suadas. Como que de propósito, antes do filme começar, largo a mão para ler uma mensagem que não responderei. Não há remédio para antigas cicatrizes, para tudo aquilo que já assassinei.
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Como é que passámos de pessoas que tremiam com a presença do outro; que sentiam borboletas só de falar sem mais ninguém presente; que ousaram descobrir-se sem roupa; que abusaram do corpo em busca do ideal mais libertador; que se deixaram ferir por palavras e gestos; que prometeram ficar juntos; que sonhavam com filhos e futuros lares; como passámos disso para vozes incorpóreas, para acusadores implacáveis; para psicólogos especializados em traumas; para dogmáticos, solitários, personalidades irreconciliáveis que querem fingir até conseguir, que precisam de esquecer as cicatrizes, mas sobretudo que querem esquecer os afetos, o amor tão difícil de apagar da memória; como passámos disso para isto?
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Tu ainda imaginas um amor difícil de apagar da memória, que foi longe de ter sido como nele pensas agora. Não só o imaginas, como te alimenta a obsessão, um desejo, vê se lês bem: impossível de realizar, de voltar a estar com quem não te quer mais. No duche, sorris, a idealizar. Sempre que estás nalgum lado, como no cinema, perguntas-te como seria se ainda estivessem ao teu lado. No filme, como nas canções, projetas o amor que não volta. Frequentemente, recordas o primeiro beijo. Quando o nome surge, o teu coração acelera. Sentes uma tristeza profunda, misturada com uma raiva contra o Destino, que tentas contornar, ao pedir desejos ao Indiferente aos Desejos, ao validar o horóscopo ou ridículas manifestações e leituras de cartas sugeridas pelo algoritmo do TikTok, ao ires ao WheelDecide.com e contentares-te quando calha de ele dizer “Sim”. Sempre que podes, acalmas-te a pensar que deves fingir até conseguir. Mas, à noite, és tão fraco que não evitas ir à procura, não evitas escrever as iniciais dos nomes no Unsent Letters do Reddit e não evitas tocar o dedo na ferida, prolongando a angústia e a saudade. Lês todas as cartas e sabes que falam de ti quando mencionam um filho da mãe. Enquanto imaginas mais de mil razões que justifiquem aquilo que não tem uma razão, dás por ti a odiar o passado, mas depois entras em pânico quando pensas num futuro marcado pela indiferença, o que para ti é pior que uma traição. Sabes que o desespero é uma nuvem, que as nuvens vão embora, cai chuva, desaparecem as nuvens, mas que a água volta a evaporar-se e a tornar-se obsessão outra vez. Não queres sentir mais nada, queres deixar de associar tudo ao coração partido e à separação, estás cansado de ficar esmagado com tudo, queres chegar àquele tempo em que olhas para trás e te perguntas como pudeste sofrer tanto. Mas continuas a querer saber se têm saudades tuas, ao mesmo tempo que não percebes que tens saudades de ti mesmo. Arrependes-te quando, ao suspirar, recordas as vezes em que foste odiável. Sentes vergonha quando constatas que não há como passar por cima de tudo aquilo de que já pediste desculpa, mas que não conseguiste ainda perdoar. Agarras-te à culpa, pois temes seguir em frente. És profundamente egocêntrico, sobretudo quando te dedicas a extrair os inventários morais de todos os outros. Julgas que consegues esconder a tua cicatriz, deixa-nos rir, pois queres chorar, mas já nem tens lágrimas para isso. A tua única forma de tentar uma redenção é ao deslizar o dedo no Tinder ou a procrastinar no trabalho sobre o qual ninguém te considera particularmente talentoso. Considerares que podes duplicar-te através da arte, ou achares que o cinema é uma máquina do tempo, não vai levar-te a lado nenhum. Tudo aquilo que vais conseguir é expor a tua narrativa e autopiedade.
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A autopiedade parece uma marca indelével desta nova geração de cineastas, que vampiriza experiências como se através do falso se conseguisse demonstrar alguma verdade. Ainda assim, o realizador deste Filme Narcisista confessa à nossa revista Fingir até Conseguir que, embora “não catártico”, o cinema tem o “potencial de acordar os mortos”. Não ouvimos dos mortos, mas conseguimos perceber algumas coisas na análise deste dia de filmagem a que fomos convidados a assistir. A primeira delas é que não é apenas o autor a lutar contra várias dependências, entre elas a de cheirar catinonas derivadas de cinzas de ratos e a de beber lixívia para pneus de camiões. Habitualmente utilizados em contexto sexual, isto é, para desinibir todos os que sentem um aperto quando pensam em carnavais para colmatar vazios existenciais, estes narcóticos não deixaram de ser adereços em diferentes cenas. “Já pensei em desaparecer com elas”, confessa entre takes um dos atores, também um toxicodependente que, embora o tenha dito sem pudor ou alegoria, faremos questão de lhe manter o anonimato. “Mas o meu corpo não cedeu. De muleta tentei fazê-las o meu veneno. Talvez deva tentar viver melhor, em vez de pensar na cicatriz.” A outra coisa que percebemos é que a conexão afetiva representada na cena filmada neste dia trata-se de um daqueles casos, longe de incomuns, em que o amor de A por B tenta realizar-se por meio de C e este, por seu lado, usa A como machado para abater D, pois D corre atrás de E, mas o que D não sabe, podemos adiantar, é que E gostaria de sentir-se livre da sombra de F, pois o segundo, por ter sido abandonado por G, pensa que é impedindo os outros de crescer que o amor deixará de escapulir, ignorando que terá sido isso que levou G a procurar o mesmo H que pedia a uma estrela-cadente que pudesse ver I outra vez, desconhecendo que a noite continuava imparcial e a lua já iluminava I a provar o saboroso sumo de morango de J, mas este, sempre que pensava em morangos, pensava também em... Lamentavelmente, não o podemos revelar, mas quem poderia logicamente prever um final feliz?
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Plano contrapicado. A rocha do algar afunila e abre-se em cima, precisamente em forma de ampulheta. Lá em cima vemos formigas duas pessoas. Temos de ouvir as ondas e algo tipo “cada um no seu caminho”. Ah, Deus, já quase passaram dois anos, daqui a quatro dias o planeta deu outra volta completa. Ofereci o pequeno-almoço a um homem que disse que foi assassino em série num projeto amador, “mas era mentira”. Depois, quando ele disse que admirava a coragem daqueles que se suicidam, respondi que corajoso era reinventar formas de viver. Mas talvez tenha respondido para me admirar a mim mesmo. Cheguei a casa, escrevo “fingir até conseguir”. Isto é, aceito tudo e deixo ir. Mas não consegui deixar de ir ao WheelDecide.com e… bem, desta vez, é “Não”. Não, não irei contornar este não. Não tarda torna-se apenas cicatriz. Realizar o amor em todas as ações. Estar confortável com a morte das coisas, a morte até do coração partido. Continuo a dever três orações, três agradecimentos e três euros do azeite que compraram ontem.
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Lá em cima onde apenas o céu podiam ansiar alcançar, os dois ouviam as ondas do mar ecoar do fundo do algar. Ele disse-lhe que um dia gostava de realizar um filme inspirado naquele lugar, não apenas o físico, mas o outro em que ambos se encontravam. Ela disse-lhe, sombriamente, que o fim chegaria antes da reprodução do fim. Ele pediu-lhe que, depois da esperança, fosse a fé a última a morrer. Deviam, de alguma forma, fingir até conseguir. Mas, pensa ela, teria sido isso que havia feito, precisamente, apenas sem intenção. No momento em que se enraiveceu por perder mais uma batalha por ter migalhas de outro fantasma, ela descarregara a dor no filho… não era a sua cicatriz que lhe importava, mas outra, infinitamente mais profunda, que ele não poderia adivinhar que a sua mãe chorava. De qualquer forma, não importava. No devido tempo, cada um lidaria com a mesma dor comum.
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Estranho novo sentimento, perto da euforia; estou nas nuvens. Não sei se consigo descrever o quão belo e avassalador foi o fim da tarde de hoje. Nada me preparou para o sol que desapareceu na outra colina. “J’y suis”, escreveu ele, e levantei-me com as bebidas que trouxe para nós. Quando me aproximei e nos olhámos, estremeci quando vi o quão era bem-parecido! “Não sei como fazemos”. Instintivamente abracei-o, mas nesse abraço ele deu-me um beijo na bochecha… A partir daqui, começo a ficar com dificuldade em recordar o que falámos, algo sobre um filme, uma cicatriz e fingir até conseguir. Não é que não me lembre, mas vidrámos nos olhos um do outro. Descemos degraus, mas não avançámos, tão dentro estávamos na conversa. Caminhávamos um pouco, parávamos. O céu adormecia, os lampiões do miradouro panorâmico acordavam, as cores da pele e dos olhos dele mudavam, e eu comecei a temer e tremer. Queria saber tudo, tudo, logo tudo... Obrigado, Deus, por teres dado esta tarde maravilhosa! Só quero continuar a descobri-lo. Há ali um poço de mistério e beleza… Agora tenho de ir para a cama. Por favor, deixa que tudo permaneça assim mágico, deixa que nenhum terror ou desilusão me esperem…