janeiro 31, 2025

Visões

Empty Space, David Lindt

1

Nada de novo debaixo da lua. O que foi é o que ainda é, o que acontece é o que há-de acontecer. É agora a torre de apartamentos que brilha. As suas janelas cintilam como o sol que se despedaçou no oceano. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. Imagens vêm, imagens vão, mas o ecrã subsiste para sempre.

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No episódio que projecto neste quarto, dois amigos carregam um terceiro, imobilizado devido a uma queda. Não por muito tempo, deixam-no cair quando percebem que não falam a mesma língua. No chão, com a sua língua, ele consegue perguntar se tudo aquilo faz parte do reality. Os outros riem ao longe, talvez não sejam assim tão amigos. 

Desconheço o que a imobiliza. Sei há muito que ela não tem quem a carregue. Ela olha para trás, não há operador de câmara. Ela já nem sabe o que esperar quando olha para aquela porta. Talvez fosse mais fácil se ela deixasse tudo isto, se me mudasse de canal, se fizesse como o R. que disse que ia só buscar pão e nunca mais voltou. Ela nunca faria isso. Pelo menos, é o que diz a si mesma.

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O filho conecta-me sorrateiramente. Oiço a mãe dele dizer que até lhe falta a voz quando diz que não gosta disso. Ele pergunta do que é que ela não gosta (questiona apenas para ganhar tempo para poder gravar som, pois não quer perder aquela história). Ela responde que não gosta que ele esteja ao telemóvel quando fala para ele. 

Mãe e filho fumam na varanda, olham para a infinidade de prédios da cidade, o horizonte dos seus sonhos perde-se algures naquela abstracta composição. E depois ela continua: ia ver o cinema que queria, chegou a ver o Top Gun cinco vezes, e o Oficial e Cavalheiro também. No restaurante ao lado do cinema, onde começou a trabalhar, comentou com o colega quando conheceu o pai: que bronco a falar, viste a voz dele? Corta logo para dizer que debaixo desse restaurante havia uma discoteca e claro que ia, estava sempre cheio, bebiam sem pagar. Acrescenta que a polícia acabou por fechar o local por causa das drogas. Na altura, ela nem sequer sabia o que eram drogas. Era tão inocente. O filho estremece um pouco por dentro: a mãe não faz ideia.

Omite como se apaixonaram. Os desejos e as promessas que fizeram juntos. As cartas de amor que rasgou quando o filho as descobriu. O passado no passado. O pai na outra sala, a ver outro melodrama.

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A última eleição—o discurso vag—promessas que nunca—um champô—debaixo dos incêndios—oceanos subin—matrix pesa n—o iminente colapso—corpos caídos na—liberdade garant—um carro a correr pelo deserto—mas preso nas teias de—números esmagados—miúdos a rir com—o pénis do golfista—aplausos fals—os impostos a pressionarem—um concorrente de reality a chorar—dólares que nunca—a hierarquia que não—a guitarra nunca tocada—um super-herói a ter—desilusões cravadas em—democracia no—detergente que limpa todas as nódoas—o leopardo que não mais—o crime que ninguém—um hambúrguer a revelar-se—o matrix moral—a sociedade antes de—um anúncio de perfume em câmara lenta—medo sem aspas—cobardice entre—ordem que governa—conservadorismo que protege—o passado reescrito—um apresentador de jogo—os mortos mais vivos que—as promessas escritas em sangue—uma família a dizer adeus num—um anúncio de seguradora—liberdade para aqueles que—uma explosão animada—a mudança que nunca vem—um frio apressado adeus—uma celebridade a apoiar—a instituição fechada—oceanos subindo—os impostos que descem—os corpos que caem—prometendo que—uma história que nunca muda.

5

Estou a vê-lo. Ele pára de percorrer o ecrã, derrotado por uma fotografia de um cardo. Está quase a aperceber-se, mas ainda não. Exclui a televisão, embora tenha andado à procura de vestígios de vigilância física. No entanto, ainda lá está, algo no brilho do ecrã do telemóvel, nas cores que tremeluzem nas paredes, nas sombras que o seu corpo projecta...

No sítio onde um mais um eram três. Ou seja, a musicalidade da sua voz. Os seus gestos graciosos e precisos. O dedilhar das melodias que trazia no piano. Os seus olhos ao acordar. A forma como se ria. A atenção com que maquilhava a E.. Os seus braços... e a forma como abria a boca, onde ele via os dentes, quando sentia um prazer maroto. O momento em que se encontraram no supermercado, e ele lhe disse que estava tão bonito. A forma como a longa exposição da câmara do telemóvel lhe desfocou o rosto. A altura em que decidiram apagar as luzes e a noite inundou o quarto deles. A lua prateada a brilhar tão perto deles.

Mas depois. O semáforo ficou vermelho. Um carro apressou-se a buzinar, enquanto ele tentava ignorar o vermelho que, para seu desgosto, o incitava a interromper a sua viagem. Era para parar, mas ele não se importava. Segue em frente. Quando o carro passa por ele, o sol reflecte-se nos dois vidros laterais, parecendo quase cegá-lo com um jacto de luz branca.

Corre pela sala e tropeça numa cadeira. O que o incomoda mais do que tudo é o som que vem do interior das paredes - o zumbido interminável da electricidade. A certeza cresce dentro dele. Está a ser encurralado, escutado e seguido. Eles pensam que ele não sabe, mas ele sabe que sabe. Por um momento, o próprio ar parece vibrar. É impossível desligar. 

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Os dois irmãos já estão quentes e na cama. Dizem o Pai-Nosso. O mais velho está de olhos fechados. O mais novo, à sua frente, fixa-me. Crê firmemente: se fechar os olhos, o mundo desaparece. Suspira a oração porque é o que tem de ser. Mas é a imagem o que o hipnotiza. O homem de camisa desabotoada. O irmão não tem ainda todos aqueles pêlos. O homem agarra na mulher e beija-a com ardor. Parece um macaco e isso excita-o. Fecha os olhos e o mundo todo acaba.

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A fantasia foi sempre a sua droga preferida. Ela vê uma pestana e quer pedir um desejo. Na pulseira que um homem lhe vendeu por alguns cêntimos há alguns meses, convencendo-a, sob a lua cheia, de que ela lhe concederia um desejo, os fios com as cores do arco-íris estão a desvanecer-se. Ela pega na pestana, mas, pela primeira vez, tem medo de pedir o que sempre desejou.

Sei que está inquieta. À procura de uma solução. Com uma ideia fixa e bela: de comunhão, de ressurreição. Mas a mudança já está a acontecer. A verdadeira união está longe do que mais a preocupa, longe dos sinais virtuais. Tudo o que é virtual e simbólico só pode levar a mais desânimo e a cálculos infrutíferos.

Ela sopra a pestana. Desta vez, deseja que uma força maior seja suficiente para se apoderar dela, guiando-a para o futuro, seja ele qual for.

Depois, olha para o cão. Que dorme, livre, indiferente a ela, indiferente à pestana, indiferente às imagens.

8

“Caros espectadores, a cena é de puro horror! Escombros. Corpos. Vidas desfeitas! Um edifício de apartamentos desmoronou-se sem aviso, sem piedade! O que provocou esta tragédia? As perguntas multiplicam-se tão rápido quanto as sirenes! Este edifício, agora só pó e fragmentos, foi testemunha de histórias. E agora, do seu fim. Fiquem connosco. O que revelamos a seguir vai deixar-vos estupefactos.”

junho 03, 2024

A cicatriz

A flower storming in my heart (2021), David Leal

1

Todas as manhãs, ela tinha o ritual de se descobrir quando cobria o rosto com maquilhagem. Encarava o seu duplo depois de acordar, depois de ver no Instagram tudo aquilo de que se esqueceria, precisamente como os seus sonhos. Resignada por nunca saber como realmente apareceria aos outros, ela aceitava o reflexo invertido como a verdadeira imagem de si, o que é o mesmo que dizer que odiava profundamente essa repugnante alucinação. Eram nestes momentos que sobrevoavam as memórias mais despropositadas, como o conselho da amiga, a recomendação de “fingir até conseguir”. Mas não havia maquilhagem suficiente que tapasse aquela cicatriz em particular. Julgava que seria com um companheiro ao seu lado que a autoperceção se transformaria. Como ele nunca tinha comentado a marca no rosto, ela desconfiava, demasiadas vezes, que seria algo que o incomodaria. Se ele não a criticava, seria porque necessariamente a criticava em pensamento. Anos após se habituar a ver o mundo todo na sua mãe, anos sem perceber que talvez tivesse sido ela a primeira a partir-lhe o coração, ainda era difícil aceitar que alguém a pudesse aceitar. Mas hoje, pelo menos por uns instantes, ela podia permitir-se a esquecer-se de ver as coisas dentro dos quadros da psicologia e podia permitir-se a esquecer o inexplicável desgosto que era estar apaixonada, mas não por si mesma. Hoje, pelo menos por uns instantes, podia permitir que a cicatriz pudesse voltar a ser não a identidade, mas outra vez um pormenor.

2

Um pormenor como estes segundos em que reparo como ela caminha lentamente, como que a pedir desculpa, ou como que a condescender com encontrar alguém que não era bem quem ela gostava que eu fosse. É então que percebo, como sempre, que poderá nunca haver uma união entre a expectativa e a realidade do encontro, uma combinação ideal entre quem é A e quem é B. O que me acalma é que a análise destes desfasamentos cai no mais profundo esquecimento assim que me digo para sorrir, para fingir até conseguir. Então sorrio, e passo a viver, e passo a viver mais do que a pensar. Hoje vamos ao cinema e continua a ser como ir à igreja, pois, fixados no grande ecrã, a nossa identidade, a individual e a de casal, poderá evaporar e sair no fim reformulada. Ela comenta que os bilhetes estão mais caros, diz que daqui a nada será como ir à ópera, e sei que há mais para além de sociologia naquela questão, há um medo que o cinema deixe de existir e que não saibamos o que fazer com o nosso tempo em dias como os de hoje. Na sala, são poucos os espectadores a disporem-se no espaço, não o fazem juntos, querem cada um uma fila de lugares, o tamanho da sua solidão. Mas nós somos dois, somos dois enquanto somos dois e, quando a sala escurece definitivamente, nós temos as mãos agarradas, firmemente como se já soubéssemos que não veremos nascer o sol amanhã; de facto, longe o tempo em que pressentíamos e desejávamos qualquer movimentação para que pudéssemos arriscar um toque virginal. Agora, sinto as nossas mãos suadas. Como que de propósito, antes do filme começar, largo a mão para ler uma mensagem que não responderei. Não há remédio para antigas cicatrizes, para tudo aquilo que já assassinei.

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Como é que passámos de pessoas que tremiam com a presença do outro; que sentiam borboletas só de falar sem mais ninguém presente; que ousaram descobrir-se sem roupa; que abusaram do corpo em busca do ideal mais libertador; que se deixaram ferir por palavras e gestos; que prometeram ficar juntos; que sonhavam com filhos e futuros lares; como passámos disso para vozes incorpóreas, para acusadores implacáveis; para psicólogos especializados em traumas; para dogmáticos, solitários, personalidades irreconciliáveis que querem fingir até conseguir, que precisam de esquecer as cicatrizes, mas sobretudo que querem esquecer os afetos, o amor tão difícil de apagar da memória; como passámos disso para isto?

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Tu ainda imaginas um amor difícil de apagar da memória, que foi longe de ter sido como nele pensas agora. Não só o imaginas, como te alimenta a obsessão, um desejo, vê se lês bem: impossível de realizar, de voltar a estar com quem não te quer mais. No duche, sorris, a idealizar. Sempre que estás nalgum lado, como no cinema, perguntas-te como seria se ainda estivessem ao teu lado. No filme, como nas canções, projetas o amor que não volta. Frequentemente, recordas o primeiro beijo. Quando o nome surge, o teu coração acelera. Sentes uma tristeza profunda, misturada com uma raiva contra o Destino, que tentas contornar, ao pedir desejos ao Indiferente aos Desejos, ao validar o horóscopo ou ridículas manifestações e leituras de cartas sugeridas pelo algoritmo do TikTok, ao ires ao WheelDecide.com e contentares-te quando calha de ele dizer “Sim”. Sempre que podes, acalmas-te a pensar que deves fingir até conseguir. Mas, à noite, és tão fraco que não evitas ir à procura, não evitas escrever as iniciais dos nomes no Unsent Letters do Reddit e não evitas tocar o dedo na ferida, prolongando a angústia e a saudade. Lês todas as cartas e sabes que falam de ti quando mencionam um filho da mãe. Enquanto imaginas mais de mil razões que justifiquem aquilo que não tem uma razão, dás por ti a odiar o passado, mas depois entras em pânico quando pensas num futuro marcado pela indiferença, o que para ti é pior que uma traição. Sabes que o desespero é uma nuvem, que as nuvens vão embora, cai chuva, desaparecem as nuvens, mas que a água volta a evaporar-se e a tornar-se obsessão outra vez. Não queres sentir mais nada, queres deixar de associar tudo ao coração partido e à separação, estás cansado de ficar esmagado com tudo, queres chegar àquele tempo em que olhas para trás e te perguntas como pudeste sofrer tanto. Mas continuas a querer saber se têm saudades tuas, ao mesmo tempo que não percebes que tens saudades de ti mesmo. Arrependes-te quando, ao suspirar, recordas as vezes em que foste odiável. Sentes vergonha quando constatas que não há como passar por cima de tudo aquilo de que já pediste desculpa, mas que não conseguiste ainda perdoar. Agarras-te à culpa, pois temes seguir em frente. És profundamente egocêntrico, sobretudo quando te dedicas a extrair os inventários morais de todos os outros. Julgas que consegues esconder a tua cicatriz, deixa-nos rir, pois queres chorar, mas já nem tens lágrimas para isso. A tua única forma de tentar uma redenção é ao deslizar o dedo no Tinder ou a procrastinar no trabalho sobre o qual ninguém te considera particularmente talentoso. Considerares que podes duplicar-te através da arte, ou achares que o cinema é uma máquina do tempo, não vai levar-te a lado nenhum. Tudo aquilo que vais conseguir é expor a tua narrativa e autopiedade.

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A autopiedade parece uma marca indelével desta nova geração de cineastas, que vampiriza experiências como se através do falso se conseguisse demonstrar alguma verdade. Ainda assim, o realizador deste Filme Narcisista confessa à nossa revista Fingir até Conseguir que, embora “não catártico”, o cinema tem o “potencial de acordar os mortos”. Não ouvimos dos mortos, mas conseguimos perceber algumas coisas na análise deste dia de filmagem a que fomos convidados a assistir. A primeira delas é que não é apenas o autor a lutar contra várias dependências, entre elas a de cheirar catinonas derivadas de cinzas de ratos e a de beber lixívia para pneus de camiões. Habitualmente utilizados em contexto sexual, isto é, para desinibir todos os que sentem um aperto quando pensam em carnavais para colmatar vazios existenciais, estes narcóticos não deixaram de ser adereços em diferentes cenas. “Já pensei em desaparecer com elas”, confessa entre takes um dos atores, também um toxicodependente que, embora o tenha dito sem pudor ou alegoria, faremos questão de lhe manter o anonimato. “Mas o meu corpo não cedeu. De muleta tentei fazê-las o meu veneno. Talvez deva tentar viver melhor, em vez de pensar na cicatriz.” A outra coisa que percebemos é que a conexão afetiva representada na cena filmada neste dia trata-se de um daqueles casos, longe de incomuns, em que o amor de A por B tenta realizar-se por meio de C e este, por seu lado, usa A como machado para abater D, pois D corre atrás de E, mas o que D não sabe, podemos adiantar, é que E gostaria de sentir-se livre da sombra de F, pois o segundo, por ter sido abandonado por G, pensa que é impedindo os outros de crescer que o amor deixará de escapulir, ignorando que terá sido isso que levou G a procurar o mesmo H que pedia a uma estrela-cadente que pudesse ver I outra vez, desconhecendo que a noite continuava imparcial e a lua já iluminava I a provar o saboroso sumo de morango de J, mas este, sempre que pensava em morangos, pensava também em... Lamentavelmente, não o podemos revelar, mas quem poderia logicamente prever um final feliz?

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Plano contrapicado. A rocha do algar afunila e abre-se em cima, precisamente em forma de ampulheta. Lá em cima vemos formigas duas pessoas. Temos de ouvir as ondas e algo tipo “cada um no seu caminho”. Ah, Deus, já quase passaram dois anos, daqui a quatro dias o planeta deu outra volta completa. Ofereci o pequeno-almoço a um homem que disse que foi assassino em série num projeto amador, “mas era mentira”. Depois, quando ele disse que admirava a coragem daqueles que se suicidam, respondi que corajoso era reinventar formas de viver. Mas talvez tenha respondido para me admirar a mim mesmo. Cheguei a casa, escrevo “fingir até conseguir”. Isto é, aceito tudo e deixo ir. Mas não consegui deixar de ir ao WheelDecide.com e… bem, desta vez, é “Não”. Não, não irei contornar este não. Não tarda torna-se apenas cicatriz. Realizar o amor em todas as ações. Estar confortável com a morte das coisas, a morte até do coração partido. Continuo a dever três orações, três agradecimentos e três euros do azeite que compraram ontem.

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Lá em cima onde apenas o céu podiam ansiar alcançar, os dois ouviam as ondas do mar ecoar do fundo do algar. Ele disse-lhe que um dia gostava de realizar um filme inspirado naquele lugar, não apenas o físico, mas o outro em que ambos se encontravam. Ela disse-lhe, sombriamente, que o fim chegaria antes da reprodução do fim. Ele pediu-lhe que, depois da esperança, fosse a fé a última a morrer. Deviam, de alguma forma, fingir até conseguir. Mas, pensa ela, teria sido isso que havia feito, precisamente, apenas sem intenção. No momento em que se enraiveceu por perder mais uma batalha por ter migalhas de outro fantasma, ela descarregara a dor no filho… não era a sua cicatriz que lhe importava, mas outra, infinitamente mais profunda, que ele não poderia adivinhar que a sua mãe chorava. De qualquer forma, não importava. No devido tempo, cada um lidaria com a mesma dor comum.

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Estranho novo sentimento, perto da euforia; estou nas nuvens. Não sei se consigo descrever o quão belo e avassalador foi o fim da tarde de hoje. Nada me preparou para o sol que desapareceu na outra colina. “J’y suis”, escreveu ele, e levantei-me com as bebidas que trouxe para nós. Quando me aproximei e nos olhámos, estremeci quando vi o quão era bem-parecido! “Não sei como fazemos”. Instintivamente abracei-o, mas nesse abraço ele deu-me um beijo na bochecha… A partir daqui, começo a ficar com dificuldade em recordar o que falámos, algo sobre um filme, uma cicatriz e fingir até conseguir. Não é que não me lembre, mas vidrámos nos olhos um do outro. Descemos degraus, mas não avançámos, tão dentro estávamos na conversa. Caminhávamos um pouco, parávamos. O céu adormecia, os lampiões do miradouro panorâmico acordavam, as cores da pele e dos olhos dele mudavam, e eu comecei a temer e tremer. Queria saber tudo, tudo, logo tudo... Obrigado, Deus, por teres dado esta tarde maravilhosa! Só quero continuar a descobri-lo. Há ali um poço de mistério e beleza… Agora tenho de ir para a cama. Por favor, deixa que tudo permaneça assim mágico, deixa que nenhum terror ou desilusão me esperem…

junho 01, 2023

Cada um no seu erro

Errar a Noite

“Uma catástrofe é a primeira estrofe de um poema de amor.” — Rilke

Querido P...,

Perguntei ao jardineiro da noite por ti, mas ele disse que não te conhecia. Ignoro se continuas a fazer da noite dia. Desde a última vez que nos beijámos que te encontro só na minha cabeça. Nunca cheguei a Coimbra e tive de vender o carro para usar. Acredites ou não, hoje já não uso… mas continuo sem carro. Movo-me pelo subterrâneo. No metro, centenas são nenhum, ninguém olha ninguém e todos se entreolham como espiões. Toda a gente sabe que não olhar é como pedir para não ser notado.

Corrompido pela tua errância, fiquei adoecido com o modo como vivias a noite: repelido pelo regresso a casa, ávido de ignorância e aventura, suplicando por ser julgado como outro. Agora sou eu que procuro por ti, por toda a parte, sem te encontrar. A minha busca por ti fez-me apenas descobrir a vergonha e a culpa. A minha busca por ti continua a ser aquilo que arreda a chance de nos redescobrir. Disseram-me que devo “desromantizar”. Talvez não te ame. Talvez só deseje muito amar-te.

Oiço as bagatelas do ucraniano de que me falaste na noite em que dançámos na Alameda, molhados pelos aspersores. O meu corpo dói com saudade, por isso deito-me na cama. A angústia da falta de resposta e de solução para nós acelera- me o coração, não obstante os prescritos estabilizadores. O piano solitário do Silvestrov faz-me imaginar salões, travellings de câmara que atravessa por colunas colossais. Mas do palácio, onde bailavam os amantes, restam hoje escombros, vestígios contaminados. Apenas os fantasmas, à distância, não cessam os movimentos e sorrisos.

Gostavas de te imaginar o ladrão do Genet e do Mário de Sá-Carneiro citavas de cor como eras um amante inconstante que se traía a si mesmo. Gostavas de dizer que o bar era um caldeirão mágico, que lá vias mais cinema do que numa sala escura e que, algum dia, daqueles talões rascunhados ias fazer um filme. Não te apercebias que, protegido pela fortificação do bar, no outro lado do balcão, mascarado com o teu corpo despido, o que gostavas era de ser centro das atenções. Esquecias-te assim de como gostavas tanto e tão pouco de ti próprio.

Antes da estreia, na sala de cinema, as luzes baixavam e fundiam-nos na escuridão. Permiti-me então levantar o olhar para ti enquanto te tornavas sombra. Anoitecia a mesma camisa que levaste para a pista de dança. Lembro-me. O dj acertou, fez Kate Bush cantar o seu If… do pacto com Deus, e nós dançávamos, juntos no mesmo espaço, mas a léguas de distância, pois a fazer, a dizer, a tentar, não há senão nada. Foi um belo amanhecer, que partilhámos sem partilhar. Diante do sol que se anunciava, eu sorri e senti-me tão grato por termos feito parte da vida um do outro.

Sigo em frente porque não consigo seguir para trás, por onde me agradaria repetir, emendar, contemplar-te mais, olhar-nos melhor. O horror não está no passado, mas em como não consigo estragar mais a recordação de nós. No Eduardo, quando ainda existia a mesa de piquenique com restos de felicidade, ouvia-te, qual terrorista, gritar o meu nome: Pedro! E lá as víamos fugir, assustadas com a tua provocação, como quando o carro da polícia chega lá em cima e toda a nudez ilumina. Reclamávamos por amor e por liberdade incondicionais; apesar de ambos coincidirem, pretendíamo-nos acima do paradoxo. Mas certo o Proust quando escreveu que o erro é mais obstinado que a fé, pois não analisa as suas crenças. Abusámos tanto dos nossos corpos à procura de uma libertação que o que acabámos por nos libertar foi da nossa fugidia união – chamam-lhe agora de “tóxica”, e intoxicados, lá isso...!

A nossa morte esteve comigo desde que comecei a amar-te e não consigo ainda acreditar que, pelo menos, pudemos chorá-la juntos. Foi numa das nossas noites sem fim, irrisoriamente mocados, mas… Lembro-me. Abraçaste-me. Pressentiste comigo o nosso fim. Beijaste-me as lágrimas do temor e vivemos aquele presente como uma dádiva irrepetível.

abril 01, 2019

A cidade muda

Fundos (2019), David Leal

Quando as luzes se apagam sabemos que chegou o tempo da projeção. As conversas ficam suspensas, nenhum telemóvel brilha e todos os olhos estão presos no mesmo ecrã; sinto que vou ter um turno tranquilo. Parece que este filme aparece um pouco para além dos limites da tela, mas acho que hoje o projecionista não está a ter um bom dia. Fico na última fila e sussurro-lhe pelo rádio que a imagem e o som parecem bem. Começar a ver o autocarro que atravessa a Albert Bridge sobre o rio Tamisa chama-me um sentimento especial, transporta-me para um lugar mais perto de casa.

“Happy to hear. Here it’s been raining on and off. I was just wondering where she came from. Oh! Lovely.” Cada frase dita com uma clareza perfeita. Como um robô imaculado, a mulher atrás de mim não cede a suspiros no meio das palavras, se calhar nem respira. Cumpre aquilo que tem de ser cumprido. O solilóquio acaba e o autocarro fica em silêncio. O céu e o rio unem-se na mesma cor branca. Desta vez, é a mãe que me liga. Separam-nos centenas de quilómetros e de segredos. Pergunta-me se já estou a ganhar a vida. É evidente que vou continuar a caminhar como um fracasso, pois a maioria não pode ser um sucesso. É preciso ter certas qualidades para vingar. De resto, não sei que valor tem o dinheiro. Seria engraçado se os meus amigos soubessem onde se gastou o que emprestaram. Penso na desilusão, na imagem de mim, repudio-me mas não tenho ainda vontade de aceitar a morte da minha alma. É verdade que a mãe também passou por isto? É verdade que somos uma cópia, geradores de outras cópias, que a nossa história é a mesma e tudo se repete, de geração para geração? “Exiges demasiado. Agora, dinheiro certo...” Examinando quem vai ali de auscultadores, enquanto entra no parque com os olhos fitos no chão, parece-me certo que chegamos todos às mesmas conclusões secretas, que ninguém ensina nem tem coragem em legar.

Introduzido no parque, decido que já não preciso do demónio da música a crepitar nos ouvidos. Caminhei milhas e já tirei a peganhenta pele do uniforme, mas continuam a aparecer-me num sobressalto certas imagens, impressões avassaladoras e confusas que trago da festa que os colegas improvisaram depois do trabalho. A lentidão ternurenta de S. a preparar-me aquele álcool com leite, enquanto, ao seu lado, eu, burro, esperava todo vermelho; não consigo também deixar de sentir que S. me comunica sinais que não posso deixar escapar. O momento em que N. me aponta à socapa o telemóvel, para me fotografar e logo fazer o retrato mergulhar no mar das imagens, e eu, idiota, a tentar sorrir e a sentir-me encurralado, despido e triturado. Quando os observava a todos e a cada um, a rir, provocar e partilhar amor com magnanimidade, segurança e propriedade, eu, só, sorria, roendo-me por dentro, atacando-me como aquele que está mas não é visível, como aquele que diz sim mas nada compreende, como aquele que é convidado mas se senta no chão. “And he has that long lasting smile”, diziam ao meu lado. Sou duramente egocêntrico mas ninguém me julga tão mal, trata tão mal como eu mesmo. Qual é o meu problema, que remédio tomar? Porque é que é tão difícil encarar as pessoas nos olhos? O que há em mim que só os outros conseguem ver? Dominado pela aflição, claro que tinha de calhar de ir contra alguém que vinha na minha direção. Peço desculpa, mas não oiço o perdão.

Nem tive tempo. Guardei o telemóvel no bolso, vendo como o outro, alheado de tudo, desaparecia depressa na penumbra. A leitura recente dos astros não me aliviou. Ao alertar para os perigos nebulosos do autoengano e do contacto com o inimigo interior, ela augura trânsitos sombrios, tão lentos que vão influenciar-me durante anos, é o que parece! Dispenso a corroboração do desassossego, acho é desta que vou mandar a astrologia dar uma volta... já não é sem tempo. Amo a escuridão e a quietude deste parque. Caminho nesta selva, misturo-me nas sombras sem medo e, distante dos lampiões laranja que iluminam o remorso, consigo amansar a voz insolente que acusa, asfixia e diz que nada tenho para ser. Erro como solipsista, vejo além do rio a margem norte da cidade infestada de adultério, imagino a liberdade e os lugares para onde a aventura me conduz, predisposto a sentir tudo o que treme, a brisa imoral da noite e o rasto distante dos carros fantasma, som que lembra as ondas do mar. É uma solidão confortadora esta, mesmo se só por haver a promessa do regresso a casa. Na penumbra cintilada pelos cigarros, os homens aproximam-se mas não se olham. Aqui apenas os românticos e os pusilânimes procuram o olhar. Ninguém carrega a mesma expectativa. São estranhos. Mas farejam-se até onde podem, como um cão reconhece outro cão. Não deixo de sentir que estou a perder o meu tempo. Enquanto não tiver sequer forças para saber o que quero e desejo, dificilmente sairei da posição de mirone e poderei saciar as vontades das sombras que me encaram. Volto-lhes as costas sabendo, resignado, para onde ir. O extraordinário, porém, parecia esperar-me. Antes de chegar ao portão do parque, quando atravesso o Pagode da Paz, uma melodia de aspeto místico ascende ao céu de nuvens baixas e pesadas. Porque não distingo a origem de tão meigo mantra musical, resolvo que a decisão de voltar para a casa deles tinha sido legitimada pela beleza. “Olha para ti, olha por ti”, vou eu repetindo mentalmente.

Deitada na relva debaixo dos telhados do templo chinês, observo V. a tocar o hang. A dança das mãos é resoluta e hipnótica. O mais jovem dos instrumentos que, através do aço, convoca sons imemoriais, foi concebido perto de onde a minha história começava a ser escrita pela mãe e pelo pai, estrangeiros como eu quando tinham esta idade. Enquanto segue decidida o seu caminho, a música dissipa a desconfiança e a hesitação, torna-nos um corpo só e pede que situemos o coração no lugar certo. Se a telepatia existe, relembramo-nos agora que a respeito da nossa consciência somos incessantes camaleões; a mudança não é um corte mas um devir imperceptível e eterno. Com o pensamento digo-lhe que a nossa magia é boa. Não tenhas medo de te afirmar, não temas ver o outro, as coisas, a noite e a manhã. Caminhamos para casa em silêncio, não consigo perceber se continuamos a comunicar por dentro. Chegados ao corredor dos quartos, para concluir a noite, V. dá-me um abraço breve e prediz que me vê amanhã. Penso-o a dizer-me que somos duas solidões que se protegem.

No outro quarto da casa, o músico do desastre e do retorno continua acordado. Segura destemidamente o gravador, na ânsia de resgatar até onde puder os sonhos que eu recordo e consigo oferecer. Não é canibal nem psicanalista, creio que ele deseja perceber qualquer coisa, talvez queira reinventar-nos e superar o vício da autocontemplação. Ao nosso lado, a reservada M. também nos memoriza com a sua câmara de filmar. Somos os portadores do segredo do nosso destino comum. Seja ele qual for, vamos continuar a procurar consolo e potencial em acordarmos todos os dias e em nos termos uns aos outros.