Empty Space, David Lindt |
1
Nada de novo debaixo da lua. O que foi é o que ainda é, o que acontece é o que há-de acontecer. É agora a torre de apartamentos que brilha. As suas janelas cintilam como o sol que se despedaçou no oceano. A vista não se farta de ver, o ouvido nunca se sacia de ouvir. Imagens vêm, imagens vão, mas o ecrã subsiste para sempre.
2
No episódio que projecto neste quarto, dois amigos carregam um terceiro, imobilizado devido a uma queda. Não por muito tempo, deixam-no cair quando percebem que não falam a mesma língua. No chão, com a sua língua, ele consegue perguntar se tudo aquilo faz parte do reality. Os outros riem ao longe, talvez não sejam assim tão amigos.
Desconheço o que a imobiliza. Sei há muito que ela não tem quem a carregue. Ela olha para trás, não há operador de câmara. Ela já nem sabe o que esperar quando olha para aquela porta. Talvez fosse mais fácil se ela deixasse tudo isto, se me mudasse de canal, se fizesse como o R. que disse que ia só buscar pão e nunca mais voltou. Ela nunca faria isso. Pelo menos, é o que diz a si mesma.
3
O filho conecta-me sorrateiramente. Oiço a mãe dele dizer que até lhe falta a voz quando diz que não gosta disso. Ele pergunta do que é que ela não gosta (questiona apenas para ganhar tempo para poder gravar som, pois não quer perder aquela história). Ela responde que não gosta que ele esteja ao telemóvel quando fala para ele.
Mãe e filho fumam na varanda, olham para a infinidade de prédios da cidade, o horizonte dos seus sonhos perde-se algures naquela abstracta composição. E depois ela continua: ia ver o cinema que queria, chegou a ver o Top Gun cinco vezes, e o Oficial e Cavalheiro também. No restaurante ao lado do cinema, onde começou a trabalhar, comentou com o colega quando conheceu o pai: que bronco a falar, viste a voz dele? Corta logo para dizer que debaixo desse restaurante havia uma discoteca e claro que ia, estava sempre cheio, bebiam sem pagar. Acrescenta que a polícia acabou por fechar o local por causa das drogas. Na altura, ela nem sequer sabia o que eram drogas. Era tão inocente. O filho estremece um pouco por dentro: a mãe não faz ideia.
Omite como se apaixonaram. Os desejos e as promessas que fizeram juntos. As cartas de amor que rasgou quando o filho as descobriu. O passado no passado. O pai na outra sala, a ver outro melodrama.
4
A última eleição—o discurso vag—promessas que nunca—um champô—debaixo dos incêndios—oceanos subin—matrix pesa n—o iminente colapso—corpos caídos na—liberdade garant—um carro a correr pelo deserto—mas preso nas teias de—números esmagados—miúdos a rir com—o pénis do golfista—aplausos fals—os impostos a pressionarem—um concorrente de reality a chorar—dólares que nunca—a hierarquia que não—a guitarra nunca tocada—um super-herói a ter—desilusões cravadas em—democracia no—detergente que limpa todas as nódoas—o leopardo que não mais—o crime que ninguém—um hambúrguer a revelar-se—o matrix moral—a sociedade antes de—um anúncio de perfume em câmara lenta—medo sem aspas—cobardice entre—ordem que governa—conservadorismo que protege—o passado reescrito—um apresentador de jogo—os mortos mais vivos que—as promessas escritas em sangue—uma família a dizer adeus num—um anúncio de seguradora—liberdade para aqueles que—uma explosão animada—a mudança que nunca vem—um frio apressado adeus—uma celebridade a apoiar—a instituição fechada—oceanos subindo—os impostos que descem—os corpos que caem—prometendo que—uma história que nunca muda.
5
Estou a vê-lo. Ele pára de percorrer o ecrã, derrotado por uma fotografia de um cardo. Está quase a aperceber-se, mas ainda não. Exclui a televisão, embora tenha andado à procura de vestígios de vigilância física. No entanto, ainda lá está, algo no brilho do ecrã do telemóvel, nas cores que tremeluzem nas paredes, nas sombras que o seu corpo projecta...
No sítio onde um mais um eram três. Ou seja, a musicalidade da sua voz. Os seus gestos graciosos e precisos. O dedilhar das melodias que trazia no piano. Os seus olhos ao acordar. A forma como se ria. A atenção com que maquilhava a E.. Os seus braços... e a forma como abria a boca, onde ele via os dentes, quando sentia um prazer maroto. O momento em que se encontraram no supermercado, e ele lhe disse que estava tão bonito. A forma como a longa exposição da câmara do telemóvel lhe desfocou o rosto. A altura em que decidiram apagar as luzes e a noite inundou o quarto deles. A lua prateada a brilhar tão perto deles.
Mas depois. O semáforo ficou vermelho. Um carro apressou-se a buzinar, enquanto ele tentava ignorar o vermelho que, para seu desgosto, o incitava a interromper a sua viagem. Era para parar, mas ele não se importava. Segue em frente. Quando o carro passa por ele, o sol reflecte-se nos dois vidros laterais, parecendo quase cegá-lo com um jacto de luz branca.
Corre pela sala e tropeça numa cadeira. O que o incomoda mais do que tudo é o som que vem do interior das paredes - o zumbido interminável da electricidade. A certeza cresce dentro dele. Está a ser encurralado, escutado e seguido. Eles pensam que ele não sabe, mas ele sabe que sabe. Por um momento, o próprio ar parece vibrar. É impossível desligar.
6
Os dois irmãos já estão quentes e na cama. Dizem o Pai-Nosso. O mais velho está de olhos fechados. O mais novo, à sua frente, fixa-me. Crê firmemente: se fechar os olhos, o mundo desaparece. Suspira a oração porque é o que tem de ser. Mas é a imagem o que o hipnotiza. O homem de camisa desabotoada. O irmão não tem ainda todos aqueles pêlos. O homem agarra na mulher e beija-a com ardor. Parece um macaco e isso excita-o. Fecha os olhos e o mundo todo acaba.
7
A fantasia foi sempre a sua droga preferida. Ela vê uma pestana e quer pedir um desejo. Na pulseira que um homem lhe vendeu por alguns cêntimos há alguns meses, convencendo-a, sob a lua cheia, de que ela lhe concederia um desejo, os fios com as cores do arco-íris estão a desvanecer-se. Ela pega na pestana, mas, pela primeira vez, tem medo de pedir o que sempre desejou.
Sei que está inquieta. À procura de uma solução. Com uma ideia fixa e bela: de comunhão, de ressurreição. Mas a mudança já está a acontecer. A verdadeira união está longe do que mais a preocupa, longe dos sinais virtuais. Tudo o que é virtual e simbólico só pode levar a mais desânimo e a cálculos infrutíferos.
Ela sopra a pestana. Desta vez, deseja que uma força maior seja suficiente para se apoderar dela, guiando-a para o futuro, seja ele qual for.
Depois, olha para o cão. Que dorme, livre, indiferente a ela, indiferente à pestana, indiferente às imagens.
8
“Caros espectadores, a cena é de puro horror! Escombros. Corpos. Vidas desfeitas! Um edifício de apartamentos desmoronou-se sem aviso, sem piedade! O que provocou esta tragédia? As perguntas multiplicam-se tão rápido quanto as sirenes! Este edifício, agora só pó e fragmentos, foi testemunha de histórias. E agora, do seu fim. Fiquem connosco. O que revelamos a seguir vai deixar-vos estupefactos.”